a visita gentil do tempo
#92 - dois livros de memórias escrito por mulheres maravilhosas que contam, cada uma à sua maneira como as palavras as livraram da loucura e da mediocridade
olá vocês!
o tempo voa, escorre pelas mãos, já cantou um poeta. o tempo é compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, versou outro. o tempo é matéria das maiores indagações e angústias do ser humano. santo agostinho dizia que “se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o sei.” escrevo tudo isso aqui pra falar de dois livros muito bons que me acompanharam nesta última década.
sim, eu falo de livro velho neste perfil. não tenho a menor obrigação de atualizar suas leituras, não tem nenhuma editora me mandando livros (nem no brasil eu tô, minha senhora). tem muitas newsletters incríveis sobre livros falando sobre lançamentos de livros no brasil.
essa aqui, por exemplo: literalmente da sarah germano
essa também, ó: queria ser grande, mas desisti, da bárbara bom angelo
tó mais uma: página cinco, do rodrigo casarin
voltando, quero falar de dois livros de memórias escrito por mulheres maravilhosas que recontam, cada uma à sua maneira suas infâncias e como as palavras as livraram da loucura e da mediocridade. o tempo é um rio que corre, da lya luft e meus desacontecimentos, da minha guru eliane brum são dois achados que me salvaram em momentos-chave da minha vida.
primeiro, eu sei que depois de 2018, quando lya luft levou a sério demais ser colunista da veja e debandou para o bolsonarismo e, certa forma, morreu nos nossos corações. mas antes de morrer, em 2022, ela não só se mostrou bastante arrependida desta postura como fez o mea culpa da parte que lhe cabia neste latifúndio. mas minhas mágoas se estabelecem no varejo e no atacado.
no atacado, eu desprezei totalmente cada pessoa declarando voto no coiso. mas no varejo, eu entendi que algumas pessoas eu não poderia, mesmo que quisesse, tirar da minha vida. não tirei minhas tias, não ia tirar uma escritora que me comovia. agora que lya habita o nosso lar, eu acho que não tem mais razão pra entrar numas de “separar o autor da obra”, não neste texto. é um livro bom vindo de alguém que vacilou, mas se ligou a tempo. dito isso, vamos a o tempo é um rio que corre.
o livro de lya luft, de 2014, é um delicado, porém vigoroso tratado sobre o tempo. mas não se trata de uma abordagem filosófica, é antes um ensaio vagaroso e sinuoso pelas memórias da autora, que se permitiu, ao completar 50 anos de literatura, contar um pouco do que viveu. nele, a autora traz relatos desde a mais tenra infância até a maturidade, entremeados de poesia e reflexões. mas lya jamais deixa sua prosa resvalar para o terreno da autoajuda sentimental.
quem conhece os livros de lya com certeza vai encontrar em o tempo… o mesmo vigor e o mesmo tom confessional de o rio do meio e perdas & ganhos, best-sellers de 1996 e 2000, respectivamente. soa, inclusive, como uma tentativa – bem sucedida, diga-se – de encerrar uma trilogia. mais do que passar lições, ela compartiha de segredos íntimos e faz do leitor um cúmplice. e apesar de caudaloso, o rio de lya luft também é cheio de curvas, meandros, detalhes cheios de delicadeza, como uma casa de sustos, um baú de lembranças, confissões de medos.
dividido em três partes, infância, juventude e maturidade, cada fase da vida encontra na água uma analogia. a primeira fase da vida é chamada de águas mansas, época da não-consciência do tempo: “só crianças conseguem viver nesse estado, que em breve lhes será roubado para se tornarem cidadãos desinteressantes”. a juventude é maré alta, época de conflitos e rebeldias, inclusive contra o próprio tempo: “estar em trânsito é nossa essência, ninguém tem tempo pra pensar no tempo.”
e por fim, a maturidade chega como a embocadura do rio, onde a autora faz as pazes com o tempo e fala sobre a morte sem tergiversar: “mas em certo momento não caberá a nós decidir: apenas iremos. com medo, com dor, com indiferença, com alguma tranqüilidade, quem sabe curiosidade: o que existe e quem está na outra margem?”
eliane brum é uma das jornalistas mais respeitadas do brasil e uma das pessoas que mais me comove como jornalista e como escritora. ela sempre coloca sua escrita em prol de dignificar as personagens que descreve, quase sempre anônimas. mas em meus desacontecimentos, ela assume a primeira pessoa e também retorna à infância para contar suas desaventuras de criança silenciosa, vivendo entre adultos barulhentos em casas tristes, marcadas pela morte.
o tema central do livro é a relação de eliane com as palavras e como aprender a contar histórias foi decisivo para livrá-la de repetir a sina das mulheres que vieram antes na sua família. com uma franqueza quase suicida, ela relata episódios familiares que a traumatizaram, antes mesmo de seu nascimento. uma irmã que morreu bebê e cujo fantasma a mãe arrastava pela casa. a avó, uma mulher comedida e sofrida que encontrava escape nas histórias fantasiosas que contava. as empregadas da casa que se perdiam em lágrimas, ouvindo novelas de rádio.
em uma linguagem repleta de simbologias, eliane consegue imprimir beleza mesmo ao relatar as tristezas que a consumia. ao seu modo, meus desacontecimentos é também uma maneira da autora de fazer as pazes com o tempo. e assim, como lya, há o reconhecimento de que a vida não seria a mesma sem a escrita. e foi aí que o júnior de uns anos atrás chorou um rio lendo uma frase tão verdadeira que chega a doer:
“a palavra é o outro corpo que habito. não sei se existe vida após a morte. desconfio que não. sei que para mim não existe vida fora da palavra escrita. só sei ser – por escrito.” eliane brum, meus desacontecimentos, 2014
em oração ao tempo, caetano veloso cantou que queria do tempo, entidade superior a quem ele trata por “um dos deuses mais lindos” apenas que seu espírito ganhasse um brilho definido. na canção esse brilho faria com que ele, caetano, espalhasse benefícios. lya luft e eliane brum são duas das maiores cronistas do nossos tempos e mesmo sem ter barganhado nada com o tempo, seus espíritos possuem um brilho definido. mesmo diante das pequenas tragédias do dia-a-dia nunca abandonam o lirismo e a leveza que só uma as velhas contadoras de histórias conseguem carregar em tempos tão pesados. e em livros singelos como estes, espalham em seus leitores muitos benefícios.
mudando de assunto
ontem, dia 4 de dezembro, (“dia das tempestades, dias dos ventos, é dia de iansã, santa bárbara…”) foi um dos eventos canônicos do meu calendário. é dia de rever o vídeo da carolinie figueiredo no jardim botânico e ficar repetindo frases icônicas como “eu achei a mina máquina dentro da minha bolsa”. gravado há 14 anos, mostra a jovem atriz extasiada com a descoberta de coisas simples da vida e filosofando sobre como a vida é fugaz. um marco na internet brasileira. na época, viralizou e se tornou um dos memes mais longevos do mundinho online br. mas veja só, quanto mais o tempo passa, a mensagem da eterna domingas de malhação faz mais sentido. nesse meio tempo rolou tanta coisa ruim (guerras, pandemia, um governo facista) que alguém falando sobre ser uma pessoa melhor no mundo, sem vender nada, a gente tem mais é que aplaudir. carolinie, tamo junto, muita luz, luz luuuuuuzzzzzz….
dei start no podcast vale o escrito, sobre a guerra do jogo do bicho no rio de janeiro. é tão bom, cheio de personagens interessantes contando pormenores da contravenção como se fosse uma fofoca de salão de beleza, que eu devorei os dois primeiros episódios sem nem ver o tempo passar. eu acho o jogo do bicho uma das coisas mais brasileiras que existem. a origem lúdica, a história e como descambou para o crime organizado e a influência no carnaval. não tem nada parecido em nenhuma parte do mundo.
ainda não vi a série documental de mesmo nome, já que a
arrombada dagloboplay não opera fora do brasil, mas só de ouvir os sotaques e a marra carioca de figuras como shana garcia e bernardo belo, eu já fico hipnotizado. pena que o terceiro episódio é sobre a milícia, os assassinos da marielle, fabrício queiroz e a família bolsonaro. não dá pra falar de crime no rio sem passar por eles né? puxa, eu já tava fazendo uma novelinha na minha cabeça, uma série meio sopranos.ainda sobre vale o escrito: enquanto ouvia, fui jogando o nome das pessoas no google, pra ver suas caras, porque é algo que eu sempre faço. aí me deparei com a seguinte situação: tamara garcia pediu pra não mostrar o rosto no documentário pra não ser reconhecida no trabalho, sendo gêmea(!!!) idêntica da shanna que mostrou a cara o tempo todo.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Minha newsletter preferida, do meu melhor amigo desconhecido. É incrível como você sincroniza seus temas com o que eu to pensando e precisando elaborar. A gente combina muito, Júnior 🫶
Não li nada da Lya até hoje, mas depois da sua escrita, vou ler.
Obrigada pelo texto!