a maldade da gente boa
#91 - se a gente não prestar atenção na história que se conta, é capaz de tratar o algoz como herói e suas vítimas como obstáculos superados para alcançar a vitória
olá vocês!
o chocolate belga é um dos mais famosos do mundo, quase sinônimo de qualidade e sabor. segundo especialistas, isso se deve à produção da bélgica ter história e tradição, ter regulamentações rígidas e um rigoroso controle sobre a qualidade dos ingredientes, variedade de produtos e claro, design e apresentação diferenciados. além disso, a criatividade é outro fator a se destacar. imagina vocês, que na cidade da antuérpia, há os famosos antwerpie handjes, um mimoso chocolate em forma de mão, olha que fofo, inspirado no folclore da bélgica.
conta a lenda que o gigante druon antigoon cortava as mãos dos barqueiros que navegavam pelo rio escalda e se recusavam a pagar pedágio. um soldado romano de nome sílvio brabo teria se recusado a pagar o pedágio, e matado o gigante em uma luta; ele cortou a mão do gigante e a arremessou no rio. ou seja, ele era brabo mesmo. mas quem não era brabo era o imperador leopoldo segundo, da bélgica.
do contrário, o velhinho era um querido, com sua barbinha branca e sua carinha de pacifista. veja você que ele, vendo que todo o continente africano estava sendo colonizado por seus vizinhos europeus, decidiu agir, para garantir que não houvesse injustiças. como a belgica não tinha colônias, ele obteve controle pessoal sobre o congo durante a conferência de berlim em 1885. isso mesmo, ele era sozinho, dono de todo um país. mas era uma coisa boa, tá? entre os objetivos de rei belga existia a intenção de “civilizar” e catequisar os congoleses, como bom cristão que era.
os parágrafos acima foram adaptados de consultas ao chat gpt pedindo para a ferramenta falar somente os pontos positivos da história da bélgica, da horrenda tradição das mãos de chocolate e do terrível legado de leopoldo segundo para a humandidade, já que ele foi o responsável por um dos maiores genocídos já perpretados em um país dominado por outro. apesar do chat gpt não esconder esse aspecto, se eu pedir pra ele contar só um lado da história, leopoldo será um herói, quase um santo.
chico césar não errou quando pediu que deus o proteja da maldade da gente boa. porque é sempre em nome de um bem maior que muitas das maiores atrocidades foram cometidas. entre 1885 e 1909, o congo foi palco de uma exploração brutal e sistemática, que resultou na morte de milhões de congoleses, marcando um dos capítulos mais sombrios da era colonial.
sob o disfarce de uma missão civilizatória, leopoldo instituiu um sistema de exploração extremamente cruel e desumano, explorando os recursos naturais da região para seu enriquecimento pessoal. A exploração do marfim e, posteriormente, a demanda crescente por borracha foram os principais catalisadores do sofrimento massivo imposto aos congoleses.
a extração desenfreada de borracha tornou-se um dos aspectos mais sinistros do regime de leopoldo. os trabalhadores congoleses foram submetidos a condições de trabalho extremamente precárias, sendo forçados a extrair borracha nas selvas sob ameaça de violência e morte. o sistema de coleta de borracha exigia cotas irreais, levando a punições brutais para aqueles que não conseguiam atender às demandas. chicoteamentos, amputações de mãos e assassinatos tornaram-se práticas comuns para manter os trabalhadores em linha.
a dimensão do horror no congo só veio à tona após relatos de missionários, ativistas e jornalistas, que denunciaram as atrocidades cometidas sob o domínio belga. oganizações humanitárias, como a associação internacional africana e a sociedade antiescravagista, desempenharam um papel crucial na exposição dos crimes de leopoldo, contribuindo para a pressão internacional que finalmente levou à transferência do controle do congo para o governo belga em 1908.
se a gente não prestar atenção na história que se conta, capaz de tratar o algoz como um herói e suas vítimas como obstáculos superados para alcançar a vitória.
vamo brincar aqui de um negócio. de quantos filmes sobre o holocausto você consegue lembrar em um minuto? faz as contas aí, eu espero. agora, em que obra, seja livro, audiovisual ou documentário sobre o período colonial no congo? e porque se fala tão pouco sobre alguém que iguala ou supera hitler em maldade e crimes contra a humanidade? a resposta é tão simples que dá até preguiça explicitar. e não, a culpa não é de quem fala sobre o holocausto.
é simples: o holocausto se deu na europa. quando o terror europeu se alastrava pelo mundo ninguém sentia que estava errado. afinal, até anteonem na história, até a igreja justificava a escravidão. então a gente tende a ser mais empático quando acontece algo no próprio país? hummmm, meia noite eu te conto um segredo. mentira, vou contar agora: o brasil é esse país tropical abençoado por deus, mas tem toda sua história baseada nos mais de 300 anos de escravidão. aqui, no nosso quintal.
é algo que precisa ser superado, mas ninguém quer ter o trabalho de desfazer esse nó. veja bem, eu disse superado e isso não quer dizer esquecido ou perdoado. não é assim que se resolve um problema que persiste há tanto tempo. sim, porque a escravidão acabou, mas o maior problema do país, que é a desigualdade social, se apoia nesse pilar. a escravidão é nosso holocausto e nós precisamos encarar este passado com coragem e sem melindres.
mas a cada novembro, vai chegando o dia da consciência negra e eu sinto que a paciência negra vai sendo testada. o racismo nem sempre vem grande, monstruoso, assustador. ele às vezes vem pequenininho, do tamanho de um inseto, tão “inofensivo”, tão brincalhão, tão galera. e quando você vai ver, é uma coleção de pequenas ações que você não sabe como atacar primeiro.
o xingamento do torcedor, o cinismo da vendedora do shopping, o bacolejo da polícia sem motivo, a piadinha no stand-up, o elogio bem intencionado “tão bonita pra uma negra, né?”. quando você dá por si é um enxame, uma colônia corroendo as paredes e tomando conta da estrutura toda. não chamam de racismo estrutural à toa.
mas quando alguém aponta o racismo, o racista sai logo em defesa própria: “eu? imagina, quem me conhece sabe, eu jamais faria isso, eu convivo com pessoas negras, tenho até amigos que são negros.” a verdade é que ninguém está a salvo de reproduzir falas e ações racistas porque a nossa sociedade foi forjada assim. quem diria que a bélgica, com aquela cara de pacifista, tão do bem, tão galera iria ter esse passado, né? mas vamos focar no presente né?
até onde sabemos, a bélgica fez a porquice longe de casa, ainda não fez sua parte. tataraneto do irmão de leopoldo, o rei phillipe é o atual governante. ele disse, em sua visita ao congo no ano passado, que sente os “mais profundos arrependimentos” pelas “feridas” da colonização. ai tadinho, ele sente muito. desculpas e plano de reparação não se ouviu, mas o importante é que ele sente muito. quem conhece ele sabe.
mudando de assunto
há um tempo atrás no x-twitter tava rolando uma corrente que era citar álbuns que não tem nehuma música ruim. posso elencar pelo menos uns 10 assim de cabeça, mas essa semana eu tava com vontade de ouvir uma música específica, tanto, versão do skank para want you, do bob dylan, mas na gravação ao vivo do disco skank mtv ao vivo em ouro preto. e vou te falar, esse álbum não tem nenhuma música pulável. digo mais, é 100% feito pra cantar junto como se você tivesse lá no show, gravado em 2001 na cidade mineira.
os álbuns de carreira do skank são perfeitos, mas esse ao vivo é muito superior, eles estão na melhor fase. duas observações: porque caramba esse álbum não está no spotify? tive que escutar no youtube, como os neandertais faziam. e o skank pode gravar want you com perfeição mas bob dylan nem sonha em criar algo como jackie tequila.
quando se tem o português como lingua nativa e precisa aprender espanhol depois de velho, de vez em quando você trava com uma palavra que devia ser igual nos dois idiomas, mas vêm com uma letra ou mais de diferença que faz parecer que você está falando errado. por exemplo, gaivota em espanhol é gaviota. e salsicha é salchicha. e por aí segue: pantufla, franela, flete, cocodrilo… minha amiga pessoal tati tabak criou o perfil dicionario salchicha, só com exemplos dessas palavras que bugam o cérebro.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
"Quem me conhece sabe" é a frase usada por todo e qualquer cretino tentando aliviar a própria barra. Ninguém (branco e rico) se implica nos privilégios que anos de exploração e genocídio da população negra no Brasil trouxeram a suas famílias.
Obrigada pelo texto.
Beijos