a cidade de papel
#133 - as livrarias de buenos aires não precisam de alguém para contar suas histórias: elas precisam ser descobertas e, uma vez descobertas, falam por si mesmas
suipacha, 521: três grandes retratos de jorge luis borges na vitrine indicam que ali ele passou muitas tardes, entre montanhas de livros antigos, alguns raríssimos. santa fe, 1860: o antigo teatro reformado é agora um ponto turístico. antigos salões de ópera são percorridos por turistas, ansiosos por uma selfie. honduras, 5574: próximo a uma praça boêmia em palermo, uma discreta loja com móveis escuros e ambiente silencioso é quase um templo. santos dumont esquina com charlone: longe dos pontos turísticos, o edifício parece um forte, mas é uma das livrarias da moda, apesar da fama de “secreta”.
buenos aires é a cidade das livrarias e não sou eu quem estou dizendo, segundo um estudo do world cities culture forums, a capital argentina é a cidade com mais livrarias por habitante no mundo. São 25 para cada 10 mil pessoas (são paulo tem 3,5). na região central, pode chegar a uma para cada 250 habitantes. que me perdoem os amantes do tango e da carne assada, mas para mim, a melhor pedida em buenos aires é conhecer as livrarias. e neste texto eu vou listar aquelas que, na minha opinião, valem uma visita, se você ama livros. vem comigo!
para começar, a mais famosa, a famigerada el atheneo grand splendid, o antigo teatro que uma rede de livrarias transformou numa megastore. ver um ponto turístico meio sem alma, com fila na porta não parece ser uma coisa de amantes de livrarias. mas te garanto que, se você se passar mais tempo lá que só uma visitinha, vai entender o porquê do hype. em um dia de sorte, quando não há fila nem gente se acotovelando em busca do melhor ângulo para uma foto, é possível se demorar contemplando os detalhes, como a abóbada, pintada pelo artista italiano nazareno orlandi com motivos que celebram o fim da primeira guerra mundial.
é uma das livrarias mais bonitas do mundo e só por isso já vale o passeio. eu torço o nariz para este lugar porque para mim, livraria não é lugar que se visita, é lugar que se habita e se deixa habitar. entrar em uma livraria como quem entra em um templo, sem ter em mente o que se quer. e não procurar, mas entender que pode encontrar algo ali, mesmo sem saber o que exatamente é esse algo.
mas isso é porque eu sempre quero mil coisas ao mesmo tempo e só posso comprar um, às vezes sem isso. então vou é ir tateando, sentindo o clima de cada livro, percorrendo lombadas com a ponta dos dedos. puxo algum cujo espírito falou baixinho “ei, olha para mim”. pode ser qualquer coisa, uma capa bonita, um título impactante, uma sinopse interessante, um autor que nunca li. uma história pode ter mil portas, a gente só precisa achar a nossa.
e às vezes uma porta fechada esconde um lugar incrível, como uma das minhas livrarias preferidas, a falena. escondida por um muro de tijolos aparentes e uma porta de ferro, a livraria fica em uma rua para lá de pacata no bairro da chacarita. é possível passar por ali sem jamais imaginar que a fachada esconde uma livraria. e é preciso tocar a campainha para adentrar a livraria e adega da simpática marcela giscafré.
com livros escolhidos a dedo nos catálogos das editoras, a falena tem a pretensão de ser um local para amantes das artes em geral. o local tem um pátio charmoso com um bar/café e organiza saraus e shows. descoberta por tiktokers, no momento a falena é uma trend entre o pessoal mais descolado, mas as vezes em que fui não tinha tanto alvoroto.
agora se você quer mesmo é história e gosta mais de lugares em que se pode ouvir o eco de outros tempos, tenho duas sugestões que são quase obrigatórias. a primeira é a librería alberto casares, quase uma metáfora da cidade, que se orgulha de se exibir velha, porém cheia de histórias. a loja pequena da pacata no microcentro portenho, existe há quase 50 anos tem na figura do dono alberto casares seu principal atrativo.
o octogenário senhorzinho sempre conta que foi nos corredores de sua livraria que o escritor jorge luiz borges, passou sua última tarde em buenos aires. no mesmo dia ele voou para a suíça, onde morreria um tempo depois. além de borges o local era frequentada por gente como bioy casares e ernesto sábato. a especialidade da casares são livros antigos, em edições e traduções raras, daquelas dificílimas de encontrar.
a outra livraria para quem tem vocação para traça é a librería ávila, a poucas quadras da plaza de mayo. fundada em 1875, quando a argentina era parte do vice reinado do rio da prata, a ávila segue ainda hoje como um dos locais mais interessantes de buenos aires. entrar por sua porta (onde se lê “la librería más antigua del mundo”) é como entrar em uma cápsula do tempo.
ao fundo, ouvem-se tangos vindos de uma vitrola antiga. entre estantes e mesas repletas de livros, com mais de cem mil exemplares, turistas tiram fotos, atraídos pela história. também pudera, a livraria foi palco de parte importante de grandes feitos da américa latina. era ali que manuel belgrano, mariano moreno, juan josé paso, entre outros heróis da independência, iam buscar livros sobre a revolução francesa. ali se reuniam para debater o que viria a ser a revolução de maio de 1810. ainda hoje há registros e objetos históricos expostos pela livraria.
na contramão do frenesi turístico, pequenas livrarias resistem e conseguem avançar ano a ano. a eterna cadencia, no bairro de palermo é uma loja austera e discreta. as paredes abarrotadas de títulos exibem títulos escolhidos com minúcia para um público seleto, mais exigente. a loja possui um selo editorial próprio e um dos melhores blogs de literatura em espanhol.
outra livraria com o mesmo apelo — ou falta dele, como preferirem — é a libros del pasaje. são lugares silenciosos, contemplativos, o único ruído possível é o passar de páginas ou um sorbo de café. não há espaço para a pressa ali e espero que, se cervantes abençoar, essas livrarias não serão trend no tiktok por algum tempo.
se bem que a borges 1795 em palermo, que tem o mesmo nome de seu endereço, é um fervo à noite. o bar serve drinks maravilhosos e no espaço externo há uma banda que se apresenta em temporadas anuais. é uma dica e tanto para quem quer conhecer algo diferente em buenos aires.
uma coisa interessante pra ter em conta são as livrarias segmentadas: uma lojinha minúscula numa galeria da avenida santa fé possui apenas livros em francês; na avenida de mayo, uma loja possui somente literatura de esquerda; o maricafé tem uma estante só de livros lgbtqia+ que é babadeira.
quer mais? a livraria do museo de bellas artes, além dos livros tem uma papelaria lindíssima, daquelas que brincando brincando, você deixa o salário do mês, só comprando miudezas. e se a grana tá curta, há um monte de banquinhas de livros usados ao lado do parque rivadávia, com relíquias esperando por um olhar curioso para serem resgatadas.
as livrarias de buenos aires não precisam de alguém para contar suas histórias: elas precisam ser descobertas e, uma vez descobertas, falam por si mesmas. na era digital, muitas são as razões para que o livro digital ainda não seja um hábito. mas a principal delas é o amor pelo objeto-livro. se você der uma caminhada pela avenida corrientes em plena madrugada, vai ver muitos quarteirões com sebos abertos e cheios de gente. é uma cidade retrô e por aqui o papel não vai morrer tão cedo.
antes de ir, um recado:
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Uma boa pedida para conhecer a cidade! Maravilhoso demais
aff vou ter que voltar